4.5.07

 

Continuando com António José Saraiva


Se há prosa inteligente na Língua Portuguesa que convém ler, reler e meditar, a de António José Saraiva é, sem dúvida, uma delas.

Como já por várias ocasiões tenho referido, os seus artigos, políticos sobretudo, reunidos na colectânea «Filhos de Saturno» são de uma meridiana clareza, plenos de originalidade e de argúcia crítica, que tornam a sua leitura um verdadeiro festim de inteligente volúpia, como raro nos acontece fruir em textos de índole política.

Um deles, bastante mais dilatado do que o habitual, intitulado «A Seta e o Anel», escrito por AJS para uma palestra proferida na SEDES, em 21 de Abril de 1977, representou para mim uma emocionante leitura, considerando-o, ainda hoje, um dos mais inquietantes ensaios que já me foi dado ler sobre a noção de Progresso, sabendo-se como, desde o século XVIII para cá, sobretudo, o termo tem sido quase sempre citado de forma obsessivamente optimista por inúmeros pensadores, ainda que duvidemos da sinceridade de alguns deles, quando abordam esse tão glosado conceito.

Também noutro opúsculo – O que é a Cultura – em que se reuniram, segundo creio, os seus derradeiros escritos de intervenção social, pequenos ensaios sobre o conceito de cultura e outros assuntos correlacionados, AJS nos deixou textos admiráveis em que dissertou, com grande engenho e suprema arte, sobre aqueles temas tão genéricos como difíceis de tratar.

Em homenagem ao exemplo de intelectual, eticamente íntegro e de espírito altivamente independente, como foi António José Saraiva, aqui transcrevo, na totalidade, dois dos seus artigos, ouso dizer, politicamente mais polémicos: «O Salazarismo», de Abril de 1989 e «O 25 de Abril e a História» de Janeiro de 1979, já qui anteriormente transcrito e comentado em 26 de Abril de 2006.

AV_Lisboa, 03 de Maio de 2007

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O Salazarismo

Feita a proclamação do regime liberal em 1834, a guerra civil continuou, porque havia, na verdade, dois liberalismos : o “cartista”, cujo texto era a Carta “doada” pelo Rei, e o democrático ou constitucionalista, que tinha por base a constituição instaurada supostamente pelo povo, isto é, pelos seus autoproclamados representantes ou “deputados”.

Em 1851, houve uma trégua e o poder passou a ser partilhado alternadamente pelos dois partidos : um, o conservador, sob o nome de “regenerador”, o outro, o democrático, sob o nome de “progressista”. Durante esta trégua fez-se a europeização , ou seja, a política de obras públicas, sob a forma de estradas e caminhos-de-ferro.

Entrou no País muito dinheiro pela via de investimentos para financiação de obras públicas, investimentos que vinham de fora e que se pagavam com novos investimentos ou com a expectativa deles. Desta forma se foi acumulando durante décadas uma dívida externa sem que aparecessem novas indústrias ou fontes de pagamento.

Dois homens, dois pilares humanos, davam estabilidade ao sistema : os chefes dos partidos, Anselmo Braamcamp (progressista) e Fontes Pereira de Melo (regenerador). A morte dos dois homens, com breve intervalo, abriu o campo à luta pela sucessão nas chefias, ao apetite de mando, à divisão dos dois partidos em grupúsculos.

A República foi provocada por este estado de coisas, a que só deu uma solução aparente e novamente verbal. Passou a haver um único grande partido em condições de governar, o Partido Republicano Português (PRP), mas debaixo dele agitavam-se incessantemente os grupúsculos que recorriam ao golpe de Estado quando se lhes oferecia a ocasião. Sendo, nesse tempo, metade do país (grosso modo) monárquico, só havia legalmente no Parlamento deputados republicanos.

O golpe militar de 28 de Maio de 1926 tinha atrás de si estas causas de instabilidade que tornavam impossível a efectivação de qualquer plano de governação. A difícil situação financeira herdada da Monarquia teve um momento de alívio expresso num orçamento severo apresentado pelo chefe “democrático” Afonso Costa, mas voltou a agravar-se catastroficamente com a nossa participação na Grande Guerra em ajuda daqueles mesmos que nos tinham humilhado com o “ultimatum” que motivara a insurreição republicana de 31 de Janeiro de 1891.

Este complexo de causas, que a constituição parlamentar de 1911 amplificava favorecendo a acção aos partidos, criou uma situação inextrincável que os militares do 28 de Maio não souberam resolver.

Um dos propósitos do 28 de Maio era “redistribuir as cartas” de forma a pôr termo ao monopólio político do PRP que viera substituir o monopólio dos dois partidos alternantes, que vigorara na Monarquia (Regeneradores e Progressistas). Mas, em primeiro lugar, era necessário acudir à urgência financeira, problema cada vez mais preocupante. Foi o equilíbrio do Orçamento, nas vésperas da crise mundial de 1930, que granjeou o prestígio de Oliveira Salazar. Mas fica por resolver o grande problema político, que se pode resumir em dois pontos :

1- Pôr fim ao monopólio do partido único (o PRP), que existia, de facto, de modo a permitir, por via legal e normal, outras opções partidárias.
2- Tornar viável a participação na vida política da massa monárquica, ilegal como partido e que se manifestava de maneiras ilegais e conspirativas.

Resolvendo estas duas questões, afastavam-se as duas principais causas da instabilidade política do País. Pelo menos assim se julgava.

A nova constituição plebiscitada em 1933 propunha-se resolvê-los. Segundo a nova constituição (a de 1933), a soberania não residia no “povo”, entidade quantitativa e informe, mas sim “em a Nação” e a Nação era uma entidade orgânica, com os seus órgãos próprios, competentes cada um para resolver os seus problemas.

Por isso, o regime instituído pela Constituição de 1933 foi chamado de “democracia orgânica”, designação que o próprio Salazar não inventou, pois que Oliveira Martins, na geração anterior, a tinha aplicado a um sistema semelhante, que só existiu no papel (opúsculo “As Eleições”, 1872). O que Salazar contestava, como Oliveira Martins já o fizera, era a capacidade de o sistema “um homem-um voto” para resolver os problemas concretos do País. O que a sua Constituição (a de 1933) pretendia era o voto qualificado e representativo das estruturas ou órgãos do País.

A instituição da União Nacional , como ele próprio sustentou, não era a criação de mais um partido, mas uma tentativa para resolver um difícil problema que já resumimos em dois pontos : primeiramente integrar na vida política nacional a massa monárquica sem afugentar os republicanos; em segundo lugar, retirar ao PRP o monopólio político que oficialmente detinha. Na intenção, a União Nacional era uma organização que devia permitir a todos os Portugueses participarem na vida política independentemente dos Partidos, e não um “partido único”, como os factos vieram a fazê-lo.

Salazar foi, sem dúvida, um dos homens mais notáveis da História de Portugal e possuía uma qualidade que os homens notáveis nem sempre possuem: a recta intenção.

A sua Constituição é, sem dúvida, lógica e geometricamente exemplar. Ele não foi o único a constatar os defeitos – não só na prática, mas também na teoria – do sistema político vigente antes de 1926. Era um sistema que se baseava num método que nas ciências humanas conduz sempre inevitavelmente a soluções erradas: o método quantitativo. A qualidade das soluções nunca depende da quantidade dos votos.

Mas o sistema constitucional óptimo, ou antes, melhor, só existe subjectivamente; coincide com a vontade do criador. E é evidente que, por isso mesmo, é impraticável. Uma Constituição Ideal é sempre uma utopia. Enquanto Salazar foi vivo disse eu (AJS) duas ou três coisas que me pareciam evidentes. Uma, era sobre o regime corporativo: pensava eu (AJS) que as corporações eram uma instituição medieval, incompatível com o século XX.

Estava enganado, porque vemos, cada vez mais os problemas serem resolvidos por métodos corporativos, por acordos entre patrões e operários ou por greves, também entre corporações. Por negociação entre entidades cada vez mais poderosas; “lobbies ou alianças sindicais. O problema agrava-se com as concentrações maciças de indivíduos e de capital.

Outra parece-me cada vez mais evidente e, por isso mesmo, põe problemas cada vez mais graves. A abolição dos Partidos Políticos supõe a criação de instrumentos que impeçam o seu aparecimento e crescimento, isto é : uma censura dos meios de comunicação e uma polícia que mantenha dentro de certos limites a faculdade de associação e de reunião. A repressão é inevitável num regime de liberdade vigiada, mesmo que seja para impedir o Partido Único.

O problema só tem uma solução no plano da subjectividade, ou seja, no plano das intenções do legislador. Se o árbitro é bem intencionado, não precisa de regras obrigatórias, mas há um profundo ditado popular que diz que das intenções só Deus sabe. Além disso, é óbvio que as regras constitucionais estabelecidas por um legislador estão destinadas pela força das coisas a ser aplicadas por outro ou outros. Por isso, as constituições precisam de ser feitas por homens medianos, intelectual e moralmente, e não podem ser entregues a homens rigorosos e muito competentes.

Era essa, possivelmente, a grande virtude e o grande defeito de Salazar : o rigor talvez excessivo consigo mesmo e com os outros. Quem lê os seus “ Discursos e Notas” fica subjugado pela limpidez e concisão de estilo, a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em Língua Portuguesa, atravessada por um ritmo afectivo poderoso.

Por esse lado, a prosa de Salazar merece um lugar de relevo na História da Literatura Portuguesa ( e só considerações políticas até agora a têm arredado do lugar que lhe compete). É uma prosa que guarda a lucidez da grande prosa do século XVII, e donde é banida toda a nebulosidade, toda a distracção, toda a frouxidão, tudo o que frequentemente torna obscura ou despropositadamente ofuscante a prosa dos nossos doutrinadores.
Essa prosa vem das melhores fontes do século XVII, o século lúcido entre todos, o século de Pascal. Do mesmo século herdou Salazar a sua utopia política. A sua utopia política foi o que se chama o “despotismo esclarecido”, de que é exemplo em Portugal o reinado de D. José, com o Ministro Pombal. Salazar não disputou o Governo, não adulou eleitores. Recebeu o Governo de quem o podia dar, isto é, do soberano.

Nesse momento, o soberano era o poder militar saído de uma sublevação triunfante. Salazar tornou-se seu Ministro, como Pombal se tornou Ministro de D. José. O poder militar teve sucessivos protagonistas – Carmona, Craveiro Lopes, Almirante Tomaz – formalmente legítimos, e Salazar, recebendo deles a investidura, considerava-se um Primeiro-Ministro legítimo. “ A soberania é um facto, não é um direito” – escreveu uma vez, numa carta, Alexandre Herculano. É um facto a soberania hereditária dos Reis, como a soberania revolucionária das Juntas Militares.

Deu-se, graças a este sistema, congeminado e executado por Salazar, uma coincidência entre a Lei e o Legislador que, só ele sabia a intenção da Lei e, para além disso, possuía qualidades de administrador miraculosamente raras, junto a uma igualmente rara integridade.

Conseguiram-se coisas, hoje inconcebíveis, como a neutralidade na II Grande Guerra e, passando aos pormenores, a realização de uma extraordinária exposição internacional, a melhor exposição que se fez em Portugal, inaugurada conforme o programa, em 1940, apesar de a guerra ter rebentado no Verão anterior, da ocupação de Paris pelos alemães, de estar em curso o bloqueio comercial à Inglaterra, etc. Refiro-me à Primeira Exposição do Mundo Português.

Conseguiu-se também, pela primeira vez desde Pombal, pôr fim à tutela inglesa, que fora confirmada com sangue, na 1ª Guerra Mundial. E hoje vemos, com uma dura clareza, como o período da nossa história a que cabe o nome de Salazarismo foi o último em que merecemos o nome de Nação independente. Agora, em plena “democracia” e sendo o Povo “soberano”, resta-nos ser uma reserva de eucaliptos para uso de uma obscura entidade económica que tem o pseudónimo de CEE.

( António José Saraiva in “Expresso” de 22 de Abril de 1989 )

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O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA

Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril.

Na perspectiva de então, havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime. Quanto à descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro «Portugal e o Futuro», do general Spínola, que tivera a aceitação nacional, e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada, ordenada e honrosa.

Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.

Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas. Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo, nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato, que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar.

Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu. Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários».

E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização, num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do exército, para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige, em grau elevadíssimo, o moral da tropa. Neste caso, a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram, conscientemente, a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que, nas circunstâncias do momento, eram puramente criminosas.

Isto quanto à descolonização, que, na realidade, não houve. O outro problema era o da liquidação do regime deposto.

Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar um governo, que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos.

Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. Em qualquer caso, já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outros talvez piores os vieram desculpar.

Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses, esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril.

Havia, também, um malefício imputado ao antigo regímen, que era o dos crimes de guerra, cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto, lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados.

Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regímen, como não se fez a descolonização. Uns homens substituiram outros, quando os mesmos não substituiram os mesmos; a um regímen monopartidário substituiu-se um regímen pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista».

Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior, mais a vergonha da deserção.

E, com este começo, tudo foi possível depois, como num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob capa de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquios, a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas confessos e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão, pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio «honesto» de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.

Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobre uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa história uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só, todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa história e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro.

É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente.

Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente. »

( António José Saraiva in Diário de Notícias_26-01-1979 )

Fim de transcrição dos artigos de AJS

Comments:
Desculpe lá, meu caro amigo, mas a "debandada" de que aqui se fala não foi tanto assim. No 25 de Abril eu estava em Angola e a tropa a que eu pertencia regressou em boa ordem. O que aconteceu à maioria das unidades militares que na altura estavam em África. O nosso regresso foi antecipado, mas não a nosso pedido.
E as coisas poderiam ter corrido muito melhor se não tem ido para lá como Governador o Alm. Rosa Coutinho.
Em plena mata dos Dembos onde estávamos aquartelados, testemunhei o facto (mais tarde soube que noutras unidades se passou o mesmo) de um alferes que, "por acaso" na altura, estar a escutar o que se passava na central rádio (era hora da sesta). E, também "por acaso" ouviu em primeira mão a notícia do golpe militar. E não perdeu tempo porque "por acaso", foi logo fazer um comício.
Porém, para seu azar, começou a fazê-lo à minha vista...
Outras unidades não tiveram a mesma sorte e, de imediato, os comandantes foram logo presos ou impedidos de exercer o comando.
Como é sabido, o PCP, durante a guerra colonial, deu ordem aos seus militantes para não fugirem à guerra. E, claro, estavam prontos para a acção.

Um abraço
 
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